Mais forte que
o desejo, Lisa Goldstein
Tradução: Tatiana Antunes
Transcrição: Eugênia Fraietta
Fonte: Sandman, o livro dos sonhos. 3ª edição. Editora
Conrad.
Dizem que hoje
em dia Desejo
raramente escolhe um ser humano como amante. Para Desejo, que é masculino e
feminino, claro e escuro, velho e novo, qualquer coisa e tudo que você já quis,
ou pelo que ansiou, ou de que precisou, isso é irresistível. E qual seria o
motivo, afinal? O amor não é um jogo para Desejo, como é para tantos mortais,
ou se é, é um jogo com um final antecipado: Desejo sempre vence. E Desejo, mais
do que qualquer coisa, odeia ficar entediado.
No ano de
1108, Desejo viu um jovem lorde e sua comitiva deixarem o castelo para caçar.
Eles cavalgavam pela vila, com o sol das primeiras horas da manhã reluzindo em
suas flâmulas e adereços, em seus arpões e nas pontas de suas flechas. Os
cachorros, marrons, cinzas e manchados, sentiram a proximidade da floresta à
frente e ficaram agitados.
Desejo não
encontrava alguém tão bonito como aquele lorde havia anos. Ele era alto, tinha
o rosto altivo, lábios bem vermelhos, cabelos pretos. Suas roupas eram feitas
de lã finas e coloridas com tintas caras, e ele as usava com uma elegância que
nenhum de seus vassalos conseguiria igualar.
E então Desejo
acompanhou o grupo à medida que entrou na floresta e passou sob as grandes
árvores, com os cachorros correndo diante deles. Desejo escutou os cachorros
uivarem alto quando avistaram um cervo, observou quando os caçadores começaram
a perseguição pelas veredas claras e escuras da floresta, ouviu os trompetes
tocarem, viu o momento de triunfo em que o arqueiro abateu o animal.
Os caçadores
pararam para cortar um ramo e amarrá-lo nos pés do cervo, e depois seguiram
cavalgando. O sol cresceu sobre a floresta, encurtando as sombras das árvores.
Tudo estava quieto agora: os pássaros tinham parado e os cachorros farejavam a
trilha silenciosamente, ficando um pouco para trás. O jovem lorde, cujo nome
era Raimon, conduziu seus vassalos floresta adentro.
Desejo
surpreendeu outro cervo. O animal pulou na frente do lorde, atravessando o
caminho apenas a alguns passos de seu cavalo antes de desaparecer nas sombras.
Sobressaltado,
Raimon começou a perseguição. Ele cavalgou depressa pela trilha estreita da
floresta, depois seguiu o cervo quando ele saiu do caminho entrando em meio às
árvores. Folhas e luz lampejavam sobre sua cabeça. Os sons da comitiva se
perdiam atrás dele. A presa se virava e simulava ataques, deslocando-se ora
para esquerda, ora para a direita, enquanto tentava despistar seu perseguidor.
O cervo
começou a diminuir o ritmo. Raimon incitou seu cavalo, seguindo os saltos do
animal floresta adentro. Desejo apareceu entre as sombras das árvores na forma de
uma mulher.
Lorde Raimon
viu e puxou com força as rédeas do cavalo. O cervo fugiu, despercebido. “Quem é
você?”, perguntou ele.
“Eu sou
Alais”, respondeu Desejo.
“Eu gostaria
de levar você comigo para meu castelo”, disse Raimon. “Não... desculpe-me, não
estou sendo cortês. Você viria comigo? Eu farei de você minha esposa, eu lhe
darei tudo que está ao meu alcance. Sou o senhor desta terra, de toda esta
floresta e tudo em volta disso por muitos quilômetros. Você é a mulher mais
bela que já vi.”
Desejo riu.
“Eu irei com você”, disse ela. “Mas não serei sua esposa.”
Raimon
ajudou-a a montar em sua garupa. Ele cavalgou lentamente de volta pela floresta
e quando ouviu os latidos dos cachorros e a risada de seus homens não se
apressou em encontrá-los.
Finalmente ele
avistou o grupo na clareira da floresta. O sol estava se pondo, deixando as
árvores escuras em contraste com o céu. Ele cavalgou em direção à clareira.
Os homens se
viraram em sua direção e um ou dois o chamaram. Mas quando viram Desejo,
silenciaram, e alguns ficaram preocupados: “Esta é Alais”, disse Raimon. “Ela
está voltando conosco para o castelo.”
“De onde... De
onde ela vem, meu lorde?”, um deles perguntou.
“De onde?”,
disse Raimon. “Ora, ela vem... Não importa de onde ela vem. Vamos... Precisamos
correr. Já é tarde.”
Raimon e sua
comitiva deixaram a floresta e cavalgaram de volta à vila. A noite caíra,
apenas a lua, as estrelas e as luzes distantes do castelo mostravam-lhes o
caminho.
Os homens
ficaram um pouco para trás, observando com olhares desconfiados o lorde e sua
nova mulher. Eles tinham pressionado Raimon para que se casasse, para gerar
herdeiros para garantir a posse de suas terras. Muitos tinham apontado
favoritas, uma irmã ou uma prima solteira. Agora, com a chegada da mulher
estranha, todos os planos estavam ameaçados. Quem era ela? Quem eram seus pais,
qual a sua linhagem? Os homens sussurravam entre si, tomando cuidado para não
deixar que seu lorde os escutasse. Um deles foi imprudente a ponto de
pronunciar a palavra “feitiçaria”.
Nos dias que
se seguiram, parecia que seus piores medos tinham se concretizado. Raimon se
fechou em suas dependências. Vieram ordens para que os servos levassem
refeições, para que um padre rezasse a missa aos domingos. E todos que o viram
em seu quarto contaram que a estranha, a feiticeira, ainda estava lá. Alguns tinham
até visto os dois na cama.
Finalmente um
dos homens deu um basta a isso. Ignorando as súplicas dos companheiros, subiu
as escadas que levavam às dependências de seu lorde e bateu na porta.
Alguém
gargalhou. “Quem é?”, perguntou Raimon.
“Sou eu, meu
senhor.”
“Venha para
dentro.”
O homem
entrou. Raimon e Alais estavam na cama e os lençóis em volta deles estavam
desarrumados e sujos. Raimon sentou-se. O movimento fez um cobertor cair e
revelou seus ombros despidos e um dos seios brancos de Alais.
O homem fixou
o olhar nela. “O que você quer?”, perguntou Raimon, sorrindo.
“Eu...”,
esforçando-se, o homem desviou o olhar. “Isto não está certo, meu lorde. Todos
os seus homens dizem o mesmo. O senhor precisa se casar. Precisa ter filhos,
herdeiros legítimos.”
“Pedi Alais em
casamento”, disse Raimon. “Ela se recusa.”
“Alais?”
“Sim. Isso é
tão surpreendente?”
“Meu lorde, o
senhor não sabe nada sobre esta mulher. Quem é ela? De onde vem?”
“Eu sei tudo o
que preciso sobre ela”, disse Raimon. Ele a olhou afetuosamente e ela sorriu,
divertindo-se.
“Meu lorde, o
senhor deve...”
“Eu devo? Meus
vassalos me dão ordens agora? A ordem deste castelo está sendo invertida?”
“Se está, foi
pela atitude de meu senhor. Do senhor e desta mulher...”
“Saia daqui”,
disse Raimon. “Estou farto dessa discussão.”
O homem foi
até a porta, hesitante, como se fosse dizer algo, e depois desceu as escadas.
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Raimon olhou
para a mulher a seu lado na cama e riu. “Ele está certo, você sabe”, disse ele.
“Mais cedo ou mais tarde eu precisarei me casar. Por que você não se casa
comigo?”
“Não posso.”
“Eu não me
importo com o dote. Eu lhe darei tudo que você quiser. É isso que a preocupa?”
“Não.”
“Você está
prometida a outra pessoa?”
“Não.”
“Eu vou ficar
louco”, disse Raimon, rindo um pouco. “Eu vou ficar louco, por sua culpa. Por
que você não se casa comigo?”
“Eu não
posso”, repetiu Desejo.
Raimon teve a
impressão de que ela se movera um pouco na cama, que seu cabelo ficara mais
curto, suas feições, mais grosseiras. Ele se afastou, assustado. Seu rosto
voltou ao que era antes, toda a estranha beleza fora restaurada.
“Quem é
você?”, disse Raimon.
“Eu não sou o
que você pensa.”
“Não. Não,
isso está muito claro. Você não é mortal, posso ver isso agora. Quem é você?”
Desejo riu.
“Eu sou o ser mais poderoso, homem ou mulher, que você jamais conhecerá. Eu sou
a coisa mais importante do mundo.”
“Você não é
Deus”, disse Raimon. Seu coração batia forte no peito, mas ele se forçou a
falar com calma. “E Deus é a coisa mais importante do mundo.”
“Eu sou ainda
mais poderoso do que o seu Deus. Eu sou um dos Perpétuos. Eu sou Desejo.”
“Desejo. Sim,
eu entendo.” Raimon ficou em
silêncio. De repente ele se virou para ela e a prendeu na
cama como fizera tantas vezes antes. “E se eu pudesse provar que você não é a
coisa mais poderosa do mundo, provar que há os que conseguem resistir a você,
então se casará comigo?”
“Ninguém
consegue resistir a mim”, respondeu Desejo, com desprezo. “Nem mesmo você, e
você é um grande lorde.”
“Você vai
arriscar seu futuro nisso? Aceita a proposta de casamento?”
“Não é
permitido aos Perpétuos casar com mortais.”
“O quê? Não é
permitido? Certamente um ser tão poderoso como você pode fazer suas próprias
leis.”
“Muito bem”,
disse lentamente Desejo. “Mostre-me duas pessoas quaisquer, e eu farei com que
se esfreguem como animais no cio.”
“E se eles não
o fizerem?”
“Se eles não o
fizerem, então você terá ganho a aposta. Eu me casarei com você.”
No dia
seguinte, lorde Raimon e Desejo deixaram suas dependências. Ele se dedicou aos
negócios que havia negligenciado, cavalgou pela propriedade, recebeu petições.
À noitinha, depois do jantar, acenou para seu administrador para que se
juntasse a ele na cabeceira da mesa de banquete. “Eu gostaria de dar uma
festa”, disse ele. “E convidar o conde Bertran, nosso vizinho do leste. Veja se
lhe manda um convite.”
“Sim, meu
senhor.”
Quando o
administrador saiu, Raimon virou-se para Desejo. “Eu dei início à aposta, minha
dama”, disse ele.
Uma semana
depois, o conde Bertran e sua comitiva chegaram para jantar no castelo do lorde
Raimon. Ele foi generoso em sua hospitalidade, não economizando carne nem
bebida. No final da refeição, o lorde bateu palmas e uma trupe de malabaristas
apareceu para entretê-los.
Os saltimbancos
atiravam facas, chapéus e maçãs. Eles pegaram o chapéu de um dos homens de
Raimon e jogaram-no para frente e para trás acima de sua cabeça enquanto ele
tentava pegá-lo, sem conseguir. Os homens e as mulheres que estavam no banquete
riam e aplaudiam. Um homem, contudo, estava sentado à parte. Ele franziu a
testa e estudou os malabaristas como se estivesse diante de um difícil problema
de gramática latina. Tinha cabelos castanhos até o ombro, olhos castanhos, um
nariz longo e afilado, e uma boca pequena. Ele seria bonito se não tivesse a
aparência tão severa.
“Aquele
homem”, disse Raimon, mostrando-o a Desejo, “é o escrevente do conde Bertran.
Seu nome é Aimeric. Eu quero que ele deseje a condessa.”
Desejo dirigiu
o olhar para ele e depois para Carenza, a esposa do conde Bertran. Era velha,
com mais de quarenta anos, e estava exaurida pela criação dos filhos. Seu rosto
era encovado, como se lhe faltassem vários dentes, e tinha bolsas escuras sob
os olhos.
Desejo riu.
“Está feito”, disse ela.
Lentamente,
Aimeric desviou o olhar dos malabaristas, passando a observar a condessa
Carenza. Seu rosto ainda tinha uma expressão examinadora, mas à medida que a
observava, sua expressão mudou, suavizando-se. A certa altura, ele franziu a
testa, como se recobrasse os sentidos, mas então Carenza riu e Aimeric se
rendeu inteiramente ao encantamento. Pelo resto da noite, ele não tirou os
olhos da condessa, e quando a comitiva de Bertran se levantou para partir, ele
a seguiu de perto, e uma vez até estendeu a mão para tocar a sua capa.
“Eu acho que
venci a aposta”, disse Desejo.
“Espere, minha
dama”, falou Raimon.
Raimon e
Desejo passaram a visitar o castelo de Bertran com frequência. Eles observavam
como Aimeric olhava fixamente para a condessa, como ele erguia o olhar com
prazer quando ela entrava na sala do banquete. Raimon o acompanhava e lhe
falava de vez em quando, e notou que o escrevente aproveitava todas as
oportunidades para mencionar o nome de sua amada durante as conversas.
Mas Aimeric
não fez nenhuma tentativa de falar com ela. Durante os jantares, ele se
mantinha no lugar, numa mesa menor. Quando a via andando em sua direção, num
dos frios corredores do castelo, ele se apressava em sair do caminho, e a
condessa e suas damas de companhia passavam sem reparar nele.
“Eu venci a
aposta, minha dama”, disse Raimon quando se recolheram aos quartos que Bertran
lhes dera para que passassem a noite. “Seu medo do conde e o hábito de obedecer
são mais fortes que o desejo. Ele nunca irá falar com ela, muito menos levá-la
para a cama.”
Desejo não
disse nada, mas foi até a vasilha com água que os servos de Bertran tinham
deixado para eles. Ela derramou água numa taça e depois soprou suavemente a
superfície.
“O que você
está fazendo?”, perguntou Raimon.
“Quieto”,
disse Desejo.
Raimon se
aproximou e olhou para dentro do recipiente. Enquanto ele observava, uma figura
se formou na superfície da água. Aimeric estava sentado em sua escrivaninha,
redigindo. Velas amarelas queimavam prodigamente em volta dele.
“Ele está
trabalhando na contabilidade de Bertran?”, perguntou Raimon. “A essa hora?”
“Quieto”,
repetiu Desejo.
A figura na
água se alterou. Agora Raimon podia ler as palavras escritas no papel.
“Poesia”, disse ele, atônito.
“Ele nunca
tinha escrito um poema antes”, disse Desejo. “Agora é só o que ele faz, até
quando devia estar trabalhando para o conde.”
“Poesia é uma
coisa. Mas ele nunca vai se aproximar dela – ele é muito medroso.”
“Você acha?”,
perguntou Desejo. Ela olhou para ele com os olhos velados pelos cílios.
“Sim.” Raimon
riu, deliciado com suas palavras. “Por que é que eu acho que você está
planejando alguma coisa? Por que eu imagino que o jogo não acabou ainda?”
“Espere”,
disse Desejo. “Você verá.”
No dia
seguinte, quando se sentaram à mesa de banquete, Desejo apontou a condessa
Carenza. Raimon observou, fascinado, como a condessa contemplava a sua taça de
vinho. Seus olhos procuravam os de Aimeric. Ela sorriu para ele, e tirou uma
mecha de cabelo da testa.
“Não é justo,
minha dama!”, disse Raimon, sussurrando para que os outros não pudessem ouvir.
“Nem um
pouco”, disse Desejo. Ela segurava um pedaço de carne de veado diante de um dos
cães de Bertran, e o erguia cada vez mais alto à medida que o animal saltava
para agarrá-lo. Ela riu. “A aposta era que o desejo é mais forte que qualquer
outra coisa no mundo. Ela inventará uma desculpa para o lorde esta noite e irá
para a cama de Aimeric.”
“E se ela não
o fizer? Você se casará comigo?”
“Isso vai
acontecer, nesta noite ou em alguma outra. Você terá de procurar uma esposa em outro
lugar.”
“Não há mais
ninguém que eu queira, minha dama. Você sabe disso.”
“Entretanto...”
“Olhe! Olhe
lá, minha dama! Aimeric está saindo.”
Desejo franziu
a testa. O escrevente tinha se levantado de seu lugar subalterno e estava
deixando o salão. “Por quê?”, perguntou ela.
“É como eu
disse, minha dama. O medo e o hábito são mais fortes que o desejo.”
“Não, não, ele
irá possuí-la. Você verá.”
“E se não
acontecer? Você se casará comigo?”
Mas Desejo
franziu a testa mais uma vez e não respondeu.
Durante as
semanas que se seguiram, conforme observaram Raimon e Desejo, a condessa e
Aimeric executaram um balé intrincado. Ela se aproximava, sorrindo, e ele
achava uma desculpa para se retirar. Ele a admirava na capela ou no salão de
banquete, mas quando ela levantava o olhar ele rapidamente desviava o seu para
outro lugar. Raimon se divertia ao perceber que a condessa Carenza ficava mais
bonita a cada dia: sua expressão ficara mais suave e as bolsas embaixo dos
olhos tinham desaparecido. Ela andava com segurança, confiante por saber que
fascinava ao menos um par de olhos.
“Veja só”,
disse Desejo para Raimon quando estavam a sós em seu quarto. “Desejo pode
transformar mulheres feias em mulheres atraentes. Diga-me outra força no mundo
que pode fazer isso.”
“Ele ainda não
procurou a cama da condessa, minha dama.”
Como resposta,
Desejo derramou água num copo e soprou dentro dele. O quarto de Aimeric parecia
o mesmo das outras noites em que o estiveram observando: as velas, o papel, os
tinteiros e as penas. A figura mudou e Raimon viu a página que estava defronte
a Aimeric.
“Embora
devesse estar triste, estou alegre”, escreveu Aimeric. “Porque meu amor me ama
como eu a amo. E embora não possamos ficar juntos...”
Alguém bateu à
porta. Raimon e Desejo, olhando para as figuras no copo, ouviram a batida tão
claramente quanto Aimeric. O escrevente se levantou e começou a andar de um
lado para o outro. Bateram novamente.
De repente
Aimeric parecia ter se decidido. Foi em direção à porta e a abriu. A condessa
Carenza estava lá, usando seu melhor vestido.
“Agora”, disse
Desejo. “Agora vai acontecer.”
“Meu amigo”,
disse Carenza para Aimeric. “Alguma coisa me diz que você sente por mim o mesmo
que sinto por você. Por favor, por favor não fuja mais de mim. Precisei reunir
toda a minha coragem para vir ao seu aposento, para falar com você...”
“Minha dama”,
disse Aimeric. “Eu a amo mais do que minha própria vida. Quando fecho os olhos
à noite, é o seu rosto que aparece diante de mim. Quando vejo outra mulher fico
desapontado porque ela não é você. Mas eu não posso – não posso desonrar meu
lorde dessa maneira...”
“Seu lorde!
Seu lorde não liga a mínima para mim. Seus pais e os meus arranjaram nosso
casamento para formar uma aliança entre as duas famílias. Não há nada entre nós
a não ser política.”
“Ainda assim,
minha dama...”
“Bertran me
usou para parir seus filhos, seus herdeiros. Agora que meus dias de gravidez se
foram, ele me deixou de lado. Você me mostrou que há algo mais – algo mais
alto...”
“Minha dama.”
Aimeric estendeu o braço e tocou a mão de Carenza. Raimon sentiu que Desejo
ficou tensa a seu lado. Agora vai acontecer, ele pensou. “Minha querida
senhora, essas coisas que me contou me deixam profundamente magoado. Parece-me
que o conde Bertran jogou fora a jóia mais preciosa que tinha em seu poder.
Ainda assim, eu não posso desonrar seus votos de matrimônio, nem os juramentos
que fiz a ele quando comecei neste serviço.”
“Por que não?
Ele desonrou nossos votos umas vinte vezes. Nós dormimos separados, ele leva
uma serva para a cama...”
“Desculpe-me,
meu amor.”
“Então você
vai me mandar embora”, disse Carenza. Uma lágrima rolou sobre sua face. “Vai me
mandar embora sem nada, despojada até mesmo de meu orgulho.”
“De jeito
nenhum”, disse Aimeric. Pela primeira vez Raimon o viu sorrir. “Eu vou cantar
para você, minha dama.”
Aimeric pegou
um alaúde no canto de seu aposento. Dedilhou-o uma ou duas vezes, afinando-o, e
depois começou a tocar.
Com Raimon e
Desejo ouvindo, Aimeric cantou a beleza de Carenza. Ele mencionou os juramentos
que fizera ao lorde, o conde Bertran, e outro juramento, que fizera à condessa
Carenza em seu coração. Ele a manteria acima de seus pensamentos, iria adorá-la
para sempre. Eles nunca satisfariam seu desejo, nem mesmo se beijariam, mas ele
lhe seria fiel até morrer.
Enquanto
Aimeric cantava, Raimon reparou que seu profundo desejo por Carenza
tranformara-se em algo diferente, uma coisa inteiramente nova. Ele falava dela
como os padres falam de Deus ou da Virgem. Ele transformara seu amor por Deus no
amor que sentia por Carenza. Raimon quase perdeu o fôlego com a ousadia do
gesto.
“Amor”, disse
ele. “Amor é mais forte que o desejo.”
Desejo riu com
desprezo. “Eles são a mesma coisa”, disse ela.
Nos dias que
se seguiram, Aimeric cantava no salão de banquete depois que todos comiam. Ele
executou a canção que Raimon já conhecia e outras. Todas tinham a mesmo tema: o
amor eterno, o amor mais forte que o desejo.
Em várias
ocasiões, Raimon observava Bertran, mas o conde parecia não ter consciência de
que as músicas eram dedicadas a sua esposa. Mas algo da gravidade e da paixão
de Aimeric se espalhou pela corte. Os vassalos de Bertran começaram a rodear
Carenza, a elogiá-la, a disputar sua atenção. Aos olhos de Raimon, ela estava
ainda mais bela, merecedora de todas as metáforas de Aimeric: ela era uma flor,
uma gazela, um pássaro.
“Eu venci a
aposta”, disse Raimon. “O amor é mais forte que o desejo.”
Mas Desejo
balançou a cabeça. “Eles são a mesma coisa”, respondeu.
Ninguém sabe
como o conceito de amor romântico teve início na Europa ocidental. Há os que
dizem que as cruzadas resgataram a música e a poesia árabe do Oriente, há quem
argumente, com menos lirismo, que a invenção da lareira propiciou uma
privacidade maior e criou uma atmosfera em que o amor podia florescer. A verdade
é que antes dessa época homens e mulheres, como Bertran e Carenza, eram levados
ao casamento por suas famílias, e por motivos que nada tinham a ver com amor:
territórios, títulos, dinheiro.
Foi Aimeric
quem mudou tudo: depois que começou a cantar nada poderia voltar a ser como
antes. O amor virou moda: homens e mulheres competiam para criar músicas como
as de Aimeric, exaltando as virtudes e a graça de seus amados. Para manter a
estrutura da civilização intacta, seu amor tinha que ser adúltero, tinha de ter
como objeto alguém que não tinha sido escolhido pela família mas pelo amante, e
por conseqüência quase nunca ele se consumava. Os amantes viviam num mundo
incrivelmente rígido. O amor nunca esmaecia porque não se resolvia durante
anos, às vezes durante a vida inteira.
Alguns dos
autores dessas músicas, os trovadores, viajaram pelo sul da França e outras
terras, espalhando suas canções na Espanha e na Itália. Outros artistas
andarilhos, como os malabaristas que entretinham lorde Raimon e sua corte, selecionavam
as canções dos trovadores e lavavam-nas ainda mais longe. Eles ficaram
conhecidos como menestréis.
As histórias
ficaram mais longas e mais elaboradas. Todas as histórias de amor do Ocidente
ganharam vida a partir da aposta entre Desejo e seu amante: Tristão e Isolda,
Romeu e Julieta, O Príncipe Encantado e a Bela Adormecida, os filmes
sentimentais de Hollywood e os romances góticos. Vidas foram exaltadas e vidas
foram arruinadas, porque essas pessoas tentaram viver com um ideal que fora
inventado centenas de anos antes de terem nascido. E por tudo isso, também,
Desejo deve levar o crédito, ou a culpa.
Raimon foi um
dos poucos que entenderam como o mundo tinha mudado. Ele viu que Aimeric,
através de sua música, tinha transcendido o desejo, o tinha transformado numa
coisa inteiramente nova. Lorde Raimon insistia que tinha ganho a aposta. Todos
os dias ele pedia a Desejo que se casasse com ele, e todos os dias ela se
recusava. Seus argumentos se tornavam mais astutos, mas filosóficos, mas Desejo
não se convencia. “Desejo e amor”, ela dizia, “são a mesma coisa.”
À medida que
ouvia as canções dos trovadores e menestréis, Raimon se convenceu de que aquilo
que sentia por Desejo era amor. Ele se intrigava como era possível viver essa
paixão todas as noites junto com Desejo sem que ela sentisse ao menos um pouco
do seu amor. Perguntava-se como ela era capaz de permitir todo o tipo de
intimidade, menos esta.
Um ano depois
de terem feito a aposta, ele acordou e viu que Desejo tinha partido. Ele a
procurou no castelo, cavalgou pela floresta, enviou cavaleiros a todas as
cidades e vilas num raio de cento e cinqüenta quilômetros. Ninguém a encontrou.
Seus vassalos
ficaram aliviados. Agora, pelo menos, lorde Raimon esqueceria a estranha mulher
que o deixara obcecado: ele se casaria e teria herdeiros. Mas Raimon nunca se
casou. Ele caçava floresta adentro e visitava o conde Bertran e sua esposa. As
pessoas notaram que ele conversava muito com o escrevente de Bertran, o homem
que cantava canções tão belas, mas ninguém entendia nada daquilo. Quando ele
cuidava dos negócios da casa, parecia que sua mente vagava. Seus vassalos
sussurravam que tarde da noite ele escrevia poesia.
Quarenta anos
depois de ter encontrado Desejo na floresta, Raimon estava em seu leito de
morte. Seus vassalos se reuniram em torno de sua cama que um dia ele dividira
com Desejo. “Ele devia ter se casado e tido filhos”, disse alguém, suavemente.
“Dizem agora que o castelo e as terras ficarão para um filho do conde Bertran.”
“Não”, disse
Raimon, fraco.
Seus homens o
olharam, surpresos. Não achavam que ele pudesse ouvi-los, ou que estivesse
consciente o bastante para falar. “O que é, meu lorde?”
“Eu não
poderia ter me casado. Fui fiel por toda a minha vida, mesmo que ela não tenha
sido fiel a mim. O amor é a coisa mais forte do mundo. Vejam”, disse ele,
fechando os olhos, “eu venci a aposta.”
Uma das aulas mais agradáveis do ano, foi lendo esse texto (sem querer puxar saco), parabéns pelo blog :)
ResponderExcluirLembro-me dessa aula. Foi ótima mesmo. Gostei do blog.
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