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allison brady

Mais forte que o desejo (Lisa Goldstein)


Mais forte que o desejo, Lisa Goldstein
Tradução: Tatiana Antunes
Transcrição: Eugênia Fraietta
Fonte: Sandman, o livro dos sonhos. 3ª edição. Editora Conrad.

Dizem que hoje em dia Desejo raramente escolhe um ser humano como amante. Para Desejo, que é masculino e feminino, claro e escuro, velho e novo, qualquer coisa e tudo que você já quis, ou pelo que ansiou, ou de que precisou, isso é irresistível. E qual seria o motivo, afinal? O amor não é um jogo para Desejo, como é para tantos mortais, ou se é, é um jogo com um final antecipado: Desejo sempre vence. E Desejo, mais do que qualquer coisa, odeia ficar entediado.
No ano de 1108, Desejo viu um jovem lorde e sua comitiva deixarem o castelo para caçar. Eles cavalgavam pela vila, com o sol das primeiras horas da manhã reluzindo em suas flâmulas e adereços, em seus arpões e nas pontas de suas flechas. Os cachorros, marrons, cinzas e manchados, sentiram a proximidade da floresta à frente e ficaram agitados.
Desejo não encontrava alguém tão bonito como aquele lorde havia anos. Ele era alto, tinha o rosto altivo, lábios bem vermelhos, cabelos pretos. Suas roupas eram feitas de lã finas e coloridas com tintas caras, e ele as usava com uma elegância que nenhum de seus vassalos conseguiria igualar.
E então Desejo acompanhou o grupo à medida que entrou na floresta e passou sob as grandes árvores, com os cachorros correndo diante deles. Desejo escutou os cachorros uivarem alto quando avistaram um cervo, observou quando os caçadores começaram a perseguição pelas veredas claras e escuras da floresta, ouviu os trompetes tocarem, viu o momento de triunfo em que o arqueiro abateu o animal.
Os caçadores pararam para cortar um ramo e amarrá-lo nos pés do cervo, e depois seguiram cavalgando. O sol cresceu sobre a floresta, encurtando as sombras das árvores. Tudo estava quieto agora: os pássaros tinham parado e os cachorros farejavam a trilha silenciosamente, ficando um pouco para trás. O jovem lorde, cujo nome era Raimon, conduziu seus vassalos floresta adentro.
Desejo surpreendeu outro cervo. O animal pulou na frente do lorde, atravessando o caminho apenas a alguns passos de seu cavalo antes de desaparecer nas sombras.
Sobressaltado, Raimon começou a perseguição. Ele cavalgou depressa pela trilha estreita da floresta, depois seguiu o cervo quando ele saiu do caminho entrando em meio às árvores. Folhas e luz lampejavam sobre sua cabeça. Os sons da comitiva se perdiam atrás dele. A presa se virava e simulava ataques, deslocando-se ora para esquerda, ora para a direita, enquanto tentava despistar seu perseguidor.
O cervo começou a diminuir o ritmo. Raimon incitou seu cavalo, seguindo os saltos do animal floresta adentro. Desejo apareceu entre as sombras das árvores na forma de uma mulher.
Lorde Raimon viu e puxou com força as rédeas do cavalo. O cervo fugiu, despercebido. “Quem é você?”, perguntou ele.
“Eu sou Alais”, respondeu Desejo.
“Eu gostaria de levar você comigo para meu castelo”, disse Raimon. “Não... desculpe-me, não estou sendo cortês. Você viria comigo? Eu farei de você minha esposa, eu lhe darei tudo que está ao meu alcance. Sou o senhor desta terra, de toda esta floresta e tudo em volta disso por muitos quilômetros. Você é a mulher mais bela que já vi.”
Desejo riu. “Eu irei com você”, disse ela. “Mas não serei sua esposa.”
Raimon ajudou-a a montar em sua garupa. Ele cavalgou lentamente de volta pela floresta e quando ouviu os latidos dos cachorros e a risada de seus homens não se apressou em encontrá-los.
Finalmente ele avistou o grupo na clareira da floresta. O sol estava se pondo, deixando as árvores escuras em contraste com o céu. Ele cavalgou em direção à clareira.
Os homens se viraram em sua direção e um ou dois o chamaram. Mas quando viram Desejo, silenciaram, e alguns ficaram preocupados: “Esta é Alais”, disse Raimon. “Ela está voltando conosco para o castelo.”
“De onde... De onde ela vem, meu lorde?”, um deles perguntou.
“De onde?”, disse Raimon. “Ora, ela vem... Não importa de onde ela vem. Vamos... Precisamos correr. Já é tarde.”
Raimon e sua comitiva deixaram a floresta e cavalgaram de volta à vila. A noite caíra, apenas a lua, as estrelas e as luzes distantes do castelo mostravam-lhes o caminho.
Os homens ficaram um pouco para trás, observando com olhares desconfiados o lorde e sua nova mulher. Eles tinham pressionado Raimon para que se casasse, para gerar herdeiros para garantir a posse de suas terras. Muitos tinham apontado favoritas, uma irmã ou uma prima solteira. Agora, com a chegada da mulher estranha, todos os planos estavam ameaçados. Quem era ela? Quem eram seus pais, qual a sua linhagem? Os homens sussurravam entre si, tomando cuidado para não deixar que seu lorde os escutasse. Um deles foi imprudente a ponto de pronunciar a palavra “feitiçaria”.
Nos dias que se seguiram, parecia que seus piores medos tinham se concretizado. Raimon se fechou em suas dependências. Vieram ordens para que os servos levassem refeições, para que um padre rezasse a missa aos domingos. E todos que o viram em seu quarto contaram que a estranha, a feiticeira, ainda estava lá. Alguns tinham até visto os dois na cama.
Finalmente um dos homens deu um basta a isso. Ignorando as súplicas dos companheiros, subiu as escadas que levavam às dependências de seu lorde e bateu na porta.
Alguém gargalhou. “Quem é?”, perguntou Raimon.
“Sou eu, meu senhor.”
“Venha para dentro.”
O homem entrou. Raimon e Alais estavam na cama e os lençóis em volta deles estavam desarrumados e sujos. Raimon sentou-se. O movimento fez um cobertor cair e revelou seus ombros despidos e um dos seios brancos de Alais.
O homem fixou o olhar nela. “O que você quer?”, perguntou Raimon, sorrindo.
“Eu...”, esforçando-se, o homem desviou o olhar. “Isto não está certo, meu lorde. Todos os seus homens dizem o mesmo. O senhor precisa se casar. Precisa ter filhos, herdeiros legítimos.”
“Pedi Alais em casamento”, disse Raimon. “Ela se recusa.”
“Alais?”
“Sim. Isso é tão surpreendente?”
“Meu lorde, o senhor não sabe nada sobre esta mulher. Quem é ela? De onde vem?”
“Eu sei tudo o que preciso sobre ela”, disse Raimon. Ele a olhou afetuosamente e ela sorriu, divertindo-se.
“Meu lorde, o senhor deve...”
“Eu devo? Meus vassalos me dão ordens agora? A ordem deste castelo está sendo invertida?”
“Se está, foi pela atitude de meu senhor. Do senhor e desta mulher...”
“Saia daqui”, disse Raimon. “Estou farto dessa discussão.”
O homem foi até a porta, hesitante, como se fosse dizer algo, e depois desceu as escadas.
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Raimon olhou para a mulher a seu lado na cama e riu. “Ele está certo, você sabe”, disse ele. “Mais cedo ou mais tarde eu precisarei me casar. Por que você não se casa comigo?”
“Não posso.”
“Eu não me importo com o dote. Eu lhe darei tudo que você quiser. É isso que a preocupa?”
“Não.”
“Você está prometida a outra pessoa?”
“Não.”
“Eu vou ficar louco”, disse Raimon, rindo um pouco. “Eu vou ficar louco, por sua culpa. Por que você não se casa comigo?”
“Eu não posso”, repetiu Desejo.
Raimon teve a impressão de que ela se movera um pouco na cama, que seu cabelo ficara mais curto, suas feições, mais grosseiras. Ele se afastou, assustado. Seu rosto voltou ao que era antes, toda a estranha beleza fora restaurada.
“Quem é você?”, disse Raimon.
“Eu não sou o que você pensa.”
“Não. Não, isso está muito claro. Você não é mortal, posso ver isso agora. Quem é você?”
Desejo riu. “Eu sou o ser mais poderoso, homem ou mulher, que você jamais conhecerá. Eu sou a coisa mais importante do mundo.”
“Você não é Deus”, disse Raimon. Seu coração batia forte no peito, mas ele se forçou a falar com calma. “E Deus é a coisa mais importante do mundo.”
“Eu sou ainda mais poderoso do que o seu Deus. Eu sou um dos Perpétuos. Eu sou Desejo.”
“Desejo. Sim, eu entendo.” Raimon ficou em silêncio. De repente ele se virou para ela e a prendeu na cama como fizera tantas vezes antes. “E se eu pudesse provar que você não é a coisa mais poderosa do mundo, provar que há os que conseguem resistir a você, então se casará comigo?”
“Ninguém consegue resistir a mim”, respondeu Desejo, com desprezo. “Nem mesmo você, e você é um grande lorde.”
“Você vai arriscar seu futuro nisso? Aceita a proposta de casamento?”
“Não é permitido aos Perpétuos casar com mortais.”
“O quê? Não é permitido? Certamente um ser tão poderoso como você pode fazer suas próprias leis.”
“Muito bem”, disse lentamente Desejo. “Mostre-me duas pessoas quaisquer, e eu farei com que se esfreguem como animais no cio.”
“E se eles não o fizerem?”
“Se eles não o fizerem, então você terá ganho a aposta. Eu me casarei com você.”
No dia seguinte, lorde Raimon e Desejo deixaram suas dependências. Ele se dedicou aos negócios que havia negligenciado, cavalgou pela propriedade, recebeu petições. À noitinha, depois do jantar, acenou para seu administrador para que se juntasse a ele na cabeceira da mesa de banquete. “Eu gostaria de dar uma festa”, disse ele. “E convidar o conde Bertran, nosso vizinho do leste. Veja se lhe manda um convite.”
“Sim, meu senhor.”
Quando o administrador saiu, Raimon virou-se para Desejo. “Eu dei início à aposta, minha dama”, disse ele.
Uma semana depois, o conde Bertran e sua comitiva chegaram para jantar no castelo do lorde Raimon. Ele foi generoso em sua hospitalidade, não economizando carne nem bebida. No final da refeição, o lorde bateu palmas e uma trupe de malabaristas apareceu para entretê-los.
Os saltimbancos atiravam facas, chapéus e maçãs. Eles pegaram o chapéu de um dos homens de Raimon e jogaram-no para frente e para trás acima de sua cabeça enquanto ele tentava pegá-lo, sem conseguir. Os homens e as mulheres que estavam no banquete riam e aplaudiam. Um homem, contudo, estava sentado à parte. Ele franziu a testa e estudou os malabaristas como se estivesse diante de um difícil problema de gramática latina. Tinha cabelos castanhos até o ombro, olhos castanhos, um nariz longo e afilado, e uma boca pequena. Ele seria bonito se não tivesse a aparência tão severa.
“Aquele homem”, disse Raimon, mostrando-o a Desejo, “é o escrevente do conde Bertran. Seu nome é Aimeric. Eu quero que ele deseje a condessa.”
Desejo dirigiu o olhar para ele e depois para Carenza, a esposa do conde Bertran. Era velha, com mais de quarenta anos, e estava exaurida pela criação dos filhos. Seu rosto era encovado, como se lhe faltassem vários dentes, e tinha bolsas escuras sob os olhos.
Desejo riu. “Está feito”, disse ela.
Lentamente, Aimeric desviou o olhar dos malabaristas, passando a observar a condessa Carenza. Seu rosto ainda tinha uma expressão examinadora, mas à medida que a observava, sua expressão mudou, suavizando-se. A certa altura, ele franziu a testa, como se recobrasse os sentidos, mas então Carenza riu e Aimeric se rendeu inteiramente ao encantamento. Pelo resto da noite, ele não tirou os olhos da condessa, e quando a comitiva de Bertran se levantou para partir, ele a seguiu de perto, e uma vez até estendeu a mão para tocar a sua capa.
“Eu acho que venci a aposta”, disse Desejo.
“Espere, minha dama”, falou Raimon.
Raimon e Desejo passaram a visitar o castelo de Bertran com frequência. Eles observavam como Aimeric olhava fixamente para a condessa, como ele erguia o olhar com prazer quando ela entrava na sala do banquete. Raimon o acompanhava e lhe falava de vez em quando, e notou que o escrevente aproveitava todas as oportunidades para mencionar o nome de sua amada durante as conversas.
Mas Aimeric não fez nenhuma tentativa de falar com ela. Durante os jantares, ele se mantinha no lugar, numa mesa menor. Quando a via andando em sua direção, num dos frios corredores do castelo, ele se apressava em sair do caminho, e a condessa e suas damas de companhia passavam sem reparar nele.
“Eu venci a aposta, minha dama”, disse Raimon quando se recolheram aos quartos que Bertran lhes dera para que passassem a noite. “Seu medo do conde e o hábito de obedecer são mais fortes que o desejo. Ele nunca irá falar com ela, muito menos levá-la para a cama.”
Desejo não disse nada, mas foi até a vasilha com água que os servos de Bertran tinham deixado para eles. Ela derramou água numa taça e depois soprou suavemente a superfície.
“O que você está fazendo?”, perguntou Raimon.
“Quieto”, disse Desejo.
Raimon se aproximou e olhou para dentro do recipiente. Enquanto ele observava, uma figura se formou na superfície da água. Aimeric estava sentado em sua escrivaninha, redigindo. Velas amarelas queimavam prodigamente em volta dele.
“Ele está trabalhando na contabilidade de Bertran?”, perguntou Raimon. “A essa hora?”
“Quieto”, repetiu Desejo.
A figura na água se alterou. Agora Raimon podia ler as palavras escritas no papel. “Poesia”, disse ele, atônito.
“Ele nunca tinha escrito um poema antes”, disse Desejo. “Agora é só o que ele faz, até quando devia estar trabalhando para o conde.”
“Poesia é uma coisa. Mas ele nunca vai se aproximar dela – ele é muito medroso.”
“Você acha?”, perguntou Desejo. Ela olhou para ele com os olhos velados pelos cílios.
“Sim.” Raimon riu, deliciado com suas palavras. “Por que é que eu acho que você está planejando alguma coisa? Por que eu imagino que o jogo não acabou ainda?”
“Espere”, disse Desejo. “Você verá.”
No dia seguinte, quando se sentaram à mesa de banquete, Desejo apontou a condessa Carenza. Raimon observou, fascinado, como a condessa contemplava a sua taça de vinho. Seus olhos procuravam os de Aimeric. Ela sorriu para ele, e tirou uma mecha de cabelo da testa.
“Não é justo, minha dama!”, disse Raimon, sussurrando para que os outros não pudessem ouvir.
“Nem um pouco”, disse Desejo. Ela segurava um pedaço de carne de veado diante de um dos cães de Bertran, e o erguia cada vez mais alto à medida que o animal saltava para agarrá-lo. Ela riu. “A aposta era que o desejo é mais forte que qualquer outra coisa no mundo. Ela inventará uma desculpa para o lorde esta noite e irá para a cama de Aimeric.”
“E se ela não o fizer? Você se casará comigo?”
“Isso vai acontecer, nesta noite ou em alguma outra. Você terá de procurar uma esposa em outro lugar.”
“Não há mais ninguém que eu queira, minha dama. Você sabe disso.”
“Entretanto...”
“Olhe! Olhe lá, minha dama! Aimeric está saindo.”
Desejo franziu a testa. O escrevente tinha se levantado de seu lugar subalterno e estava deixando o salão. “Por quê?”, perguntou ela.
“É como eu disse, minha dama. O medo e o hábito são mais fortes que o desejo.”
“Não, não, ele irá possuí-la. Você verá.”
“E se não acontecer? Você se casará comigo?”
Mas Desejo franziu a testa mais uma vez e não respondeu.
Durante as semanas que se seguiram, conforme observaram Raimon e Desejo, a condessa e Aimeric executaram um balé intrincado. Ela se aproximava, sorrindo, e ele achava uma desculpa para se retirar. Ele a admirava na capela ou no salão de banquete, mas quando ela levantava o olhar ele rapidamente desviava o seu para outro lugar. Raimon se divertia ao perceber que a condessa Carenza ficava mais bonita a cada dia: sua expressão ficara mais suave e as bolsas embaixo dos olhos tinham desaparecido. Ela andava com segurança, confiante por saber que fascinava ao menos um par de olhos.
“Veja só”, disse Desejo para Raimon quando estavam a sós em seu quarto. “Desejo pode transformar mulheres feias em mulheres atraentes. Diga-me outra força no mundo que pode fazer isso.”
“Ele ainda não procurou a cama da condessa, minha dama.”
Como resposta, Desejo derramou água num copo e soprou dentro dele. O quarto de Aimeric parecia o mesmo das outras noites em que o estiveram observando: as velas, o papel, os tinteiros e as penas. A figura mudou e Raimon viu a página que estava defronte a Aimeric.
“Embora devesse estar triste, estou alegre”, escreveu Aimeric. “Porque meu amor me ama como eu a amo. E embora não possamos ficar juntos...”
Alguém bateu à porta. Raimon e Desejo, olhando para as figuras no copo, ouviram a batida tão claramente quanto Aimeric. O escrevente se levantou e começou a andar de um lado para o outro. Bateram novamente.
De repente Aimeric parecia ter se decidido. Foi em direção à porta e a abriu. A condessa Carenza estava lá, usando seu melhor vestido.
“Agora”, disse Desejo. “Agora vai acontecer.”
“Meu amigo”, disse Carenza para Aimeric. “Alguma coisa me diz que você sente por mim o mesmo que sinto por você. Por favor, por favor não fuja mais de mim. Precisei reunir toda a minha coragem para vir ao seu aposento, para falar com você...”
“Minha dama”, disse Aimeric. “Eu a amo mais do que minha própria vida. Quando fecho os olhos à noite, é o seu rosto que aparece diante de mim. Quando vejo outra mulher fico desapontado porque ela não é você. Mas eu não posso – não posso desonrar meu lorde dessa maneira...”
“Seu lorde! Seu lorde não liga a mínima para mim. Seus pais e os meus arranjaram nosso casamento para formar uma aliança entre as duas famílias. Não há nada entre nós a não ser política.”
“Ainda assim, minha dama...”
“Bertran me usou para parir seus filhos, seus herdeiros. Agora que meus dias de gravidez se foram, ele me deixou de lado. Você me mostrou que há algo mais – algo mais alto...”
“Minha dama.” Aimeric estendeu o braço e tocou a mão de Carenza. Raimon sentiu que Desejo ficou tensa a seu lado. Agora vai acontecer, ele pensou. “Minha querida senhora, essas coisas que me contou me deixam profundamente magoado. Parece-me que o conde Bertran jogou fora a jóia mais preciosa que tinha em seu poder. Ainda assim, eu não posso desonrar seus votos de matrimônio, nem os juramentos que fiz a ele quando comecei neste serviço.”
“Por que não? Ele desonrou nossos votos umas vinte vezes. Nós dormimos separados, ele leva uma serva para a cama...”
“Desculpe-me, meu amor.”
“Então você vai me mandar embora”, disse Carenza. Uma lágrima rolou sobre sua face. “Vai me mandar embora sem nada, despojada até mesmo de meu orgulho.”
“De jeito nenhum”, disse Aimeric. Pela primeira vez Raimon o viu sorrir. “Eu vou cantar para você, minha dama.”
Aimeric pegou um alaúde no canto de seu aposento. Dedilhou-o uma ou duas vezes, afinando-o, e depois começou a tocar.
Com Raimon e Desejo ouvindo, Aimeric cantou a beleza de Carenza. Ele mencionou os juramentos que fizera ao lorde, o conde Bertran, e outro juramento, que fizera à condessa Carenza em seu coração. Ele a manteria acima de seus pensamentos, iria adorá-la para sempre. Eles nunca satisfariam seu desejo, nem mesmo se beijariam, mas ele lhe seria fiel até morrer.
Enquanto Aimeric cantava, Raimon reparou que seu profundo desejo por Carenza tranformara-se em algo diferente, uma coisa inteiramente nova. Ele falava dela como os padres falam de Deus ou da Virgem. Ele transformara seu amor por Deus no amor que sentia por Carenza. Raimon quase perdeu o fôlego com a ousadia do gesto.
“Amor”, disse ele. “Amor é mais forte que o desejo.”
Desejo riu com desprezo. “Eles são a mesma coisa”, disse ela.
Nos dias que se seguiram, Aimeric cantava no salão de banquete depois que todos comiam. Ele executou a canção que Raimon já conhecia e outras. Todas tinham a mesmo tema: o amor eterno, o amor mais forte que o desejo.
Em várias ocasiões, Raimon observava Bertran, mas o conde parecia não ter consciência de que as músicas eram dedicadas a sua esposa. Mas algo da gravidade e da paixão de Aimeric se espalhou pela corte. Os vassalos de Bertran começaram a rodear Carenza, a elogiá-la, a disputar sua atenção. Aos olhos de Raimon, ela estava ainda mais bela, merecedora de todas as metáforas de Aimeric: ela era uma flor, uma gazela, um pássaro.
“Eu venci a aposta”, disse Raimon. “O amor é mais forte que o desejo.”
Mas Desejo balançou a cabeça. “Eles são a mesma coisa”, respondeu.

Ninguém sabe como o conceito de amor romântico teve início na Europa ocidental. Há os que dizem que as cruzadas resgataram a música e a poesia árabe do Oriente, há quem argumente, com menos lirismo, que a invenção da lareira propiciou uma privacidade maior e criou uma atmosfera em que o amor podia florescer. A verdade é que antes dessa época homens e mulheres, como Bertran e Carenza, eram levados ao casamento por suas famílias, e por motivos que nada tinham a ver com amor: territórios, títulos, dinheiro.
Foi Aimeric quem mudou tudo: depois que começou a cantar nada poderia voltar a ser como antes. O amor virou moda: homens e mulheres competiam para criar músicas como as de Aimeric, exaltando as virtudes e a graça de seus amados. Para manter a estrutura da civilização intacta, seu amor tinha que ser adúltero, tinha de ter como objeto alguém que não tinha sido escolhido pela família mas pelo amante, e por conseqüência quase nunca ele se consumava. Os amantes viviam num mundo incrivelmente rígido. O amor nunca esmaecia porque não se resolvia durante anos, às vezes durante a vida inteira.
Alguns dos autores dessas músicas, os trovadores, viajaram pelo sul da França e outras terras, espalhando suas canções na Espanha e na Itália. Outros artistas andarilhos, como os malabaristas que entretinham lorde Raimon e sua corte, selecionavam as canções dos trovadores e lavavam-nas ainda mais longe. Eles ficaram conhecidos como menestréis.
As histórias ficaram mais longas e mais elaboradas. Todas as histórias de amor do Ocidente ganharam vida a partir da aposta entre Desejo e seu amante: Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, O Príncipe Encantado e a Bela Adormecida, os filmes sentimentais de Hollywood e os romances góticos. Vidas foram exaltadas e vidas foram arruinadas, porque essas pessoas tentaram viver com um ideal que fora inventado centenas de anos antes de terem nascido. E por tudo isso, também, Desejo deve levar o crédito, ou a culpa.
Raimon foi um dos poucos que entenderam como o mundo tinha mudado. Ele viu que Aimeric, através de sua música, tinha transcendido o desejo, o tinha transformado numa coisa inteiramente nova. Lorde Raimon insistia que tinha ganho a aposta. Todos os dias ele pedia a Desejo que se casasse com ele, e todos os dias ela se recusava. Seus argumentos se tornavam mais astutos, mas filosóficos, mas Desejo não se convencia. “Desejo e amor”, ela dizia, “são a mesma coisa.”
À medida que ouvia as canções dos trovadores e menestréis, Raimon se convenceu de que aquilo que sentia por Desejo era amor. Ele se intrigava como era possível viver essa paixão todas as noites junto com Desejo sem que ela sentisse ao menos um pouco do seu amor. Perguntava-se como ela era capaz de permitir todo o tipo de intimidade, menos esta.
Um ano depois de terem feito a aposta, ele acordou e viu que Desejo tinha partido. Ele a procurou no castelo, cavalgou pela floresta, enviou cavaleiros a todas as cidades e vilas num raio de cento e cinqüenta quilômetros. Ninguém a encontrou.
Seus vassalos ficaram aliviados. Agora, pelo menos, lorde Raimon esqueceria a estranha mulher que o deixara obcecado: ele se casaria e teria herdeiros. Mas Raimon nunca se casou. Ele caçava floresta adentro e visitava o conde Bertran e sua esposa. As pessoas notaram que ele conversava muito com o escrevente de Bertran, o homem que cantava canções tão belas, mas ninguém entendia nada daquilo. Quando ele cuidava dos negócios da casa, parecia que sua mente vagava. Seus vassalos sussurravam que tarde da noite ele escrevia poesia.
Quarenta anos depois de ter encontrado Desejo na floresta, Raimon estava em seu leito de morte. Seus vassalos se reuniram em torno de sua cama que um dia ele dividira com Desejo. “Ele devia ter se casado e tido filhos”, disse alguém, suavemente. “Dizem agora que o castelo e as terras ficarão para um filho do conde Bertran.”
“Não”, disse Raimon, fraco.
Seus homens o olharam, surpresos. Não achavam que ele pudesse ouvi-los, ou que estivesse consciente o bastante para falar. “O que é, meu lorde?”
“Eu não poderia ter me casado. Fui fiel por toda a minha vida, mesmo que ela não tenha sido fiel a mim. O amor é a coisa mais forte do mundo. Vejam”, disse ele, fechando os olhos, “eu venci a aposta.”

2 comentários:

  1. Uma das aulas mais agradáveis do ano, foi lendo esse texto (sem querer puxar saco), parabéns pelo blog :)

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  2. Lembro-me dessa aula. Foi ótima mesmo. Gostei do blog.

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